segunda-feira, 8 de outubro de 2007

(...)Um dia eu me olharei no espelho e notarei que meus cabelos começam a embranquecer e pela primeira vez terei consciência de estar vivendo neste pequeno hotel sob um nome falso, sem amigos ou conhecidos de qualquer tipo por vinte e cinco anos. Isto vai me surpreender um pouco, mas não me incomodará nem um pouco.

Eu ficarei contente que o tempo tenha passado tão facilmente assim. De vez em quando eu talvez vá ao cinema. Sentarei nas filas de trás, com toda a escuridão ao meu redor e, ficarei sentada com pessoas imóveis ao meu lado sem tomarem conhecimento da minha presença. Olhando a tela. Pessoas imaginárias. Pessoas das estórias. Lerei grandes livros e diários de escritores mortos.

Eu me sentirei mais próxima deles do que das pessoas que conheci antes de ter me retirado do mundo. Esta minha amizade com poetas mortos será doce e refrescante, porque não terei que tocá-los ou responder suas perguntas. Eles falarão comigo sem esperar minhas respostas. E ficarei sonolenta ouvindo suas vozes explicando os mistérios para mim.

Dormirei com o livro ainda entre os dedos, e choverá. Acordarei e ouvirei a chuva e tornarei a dormir. Uma estação de chuva, chuva, chuva... Então um dia, quando tiver fechado um livro ou voltado sozinha do cinema para casa às onze horas da noite... Olharei no espelho e verei que o meu cabelo ficou branco. Branco, completamente branco. Tão branco quanto a espuma das ondas.

Passarei as mãos pelo meu corpo e sentirei o quanto fiquei leve e magra. Oh, como estarei magra. Quase transparente. Quase irreal. Então compreenderei, saberei, de modo vago, que estava morando neste pequeno hotel, sem nenhuma relação social, responsabilidade, ansiedades ou perturbações de qualquer tipo – por quase cinqüenta anos. Meio século. Praticamente uma vida inteira. Nem sequer me lembrarei dos nomes das pessoas que conhecia antes de vir para cá nem da sensação de ser alguém esperando por alguém que...talvez não venha...

Então saberei – olhando no espelho – que pela primeira vez chegou o momento de andar sozinha mais uma vez na calçada com o vento forte batendo em mim, o vento limpo e branco que vem do princípio do mundo, ainda mais além do que isto, vem do princípio do espaço, ainda mais além do que qualquer coisa que haja além do princípio do espaço... Então sairei e andarei pela calçada. Andarei sozinha e serei empurrada pelo vento e ficarei pequenina, pequenina. (...)

- “Fala Comigo doce como a chuva”
de: Tennessee Williams

História dos Sete Prodígios

Nunca houve mulher tão difícil nem homem mais mago entre a boca do rio Amazonas e a Bahia de Todos os Santos.
Sete prodígios teve que cumprir José para ganhar os favores de Maria.

O pai de Maria disse:
-É um morto de fome.
Então José abriu em pleno ar uma toalha de rendas, feita por mão de ninguém, e ordenou:
- Ponha-se mesa.
E um banquete de muitas travessas fumegantes foi servido por ninguém sobre a toalha que flutuava no nada. E aquilo foi uma alegria para as bocas de todos.
Mas Maria não comeu nem um grão de arroz.

O
rico do lugar, senhor de terra e de gente, disse:
-É um pobretão de merda.
Então José chamou sua cabra, que chegou pilando de lugar nenhum, e ordenou:
- Cague, cabra.
E a cabra cagou ouro. E houve ouro para as mãos de todos.
Mas Maria virou as costas para o fulgor.

O noivo de Maria, que era pescador, disse:
- De pesca não entende nada.
Então José, da beira do mar, soprou. Soprou com pulmões que não eram seus pulmões, e ordenou:
- Seque mar.
E o mar se retirou, deixando a areia toda prateada de peixes. E os peixes transbordaram das cestas de todos.
Mas Maria tapou o nariz.

O finado marido de Maria, que era um fantasma de fogo, disse:
- Vou fazê-lo virar carvão.
E as chamas atacaram José por todos os lados.
Então José ordenou, com voz que não era sua voz:
- Fogo, me refresque.
E se banhou na fogueira. E todo mundo ficou de olho arregalado.
Mas Maria fechou as pálpebras.

O padre do lugar disse:
- Merece o inferno.
E declarou José culpado de bruxaria e de pacto com o demônio.
Então José agarrou o padre pelo pescoço e ordenou:
- Estique-se braço.
E o braço de José, que já não era mais seu braço, levou o padre para os ardentes abismos do universo. E todos ficaram com a boca aberta.
Mas Maria gritou de horror. E, num piscar de olhos, o longuíssimo braço trouxe de volta o padre chamuscado.

O policial disse:
- Merece cadeia.
E partiu para cima de José, cassetete na mão.
Então José ordenou:
- Bata, cassetete.
E o cassetete do guarda bateu no guarda, que saiu correndo, perseguido por sua própria arma, se sumiu de vista. E todos riram. E Maria também.
E Maria ofereceu a José uma folha de louro e uma rosa branca.

O juiz disse:
- Merece morrer.
E José foi condenado por desacato, violação do direito de propriedade do pai sobre a filha e do morto sobre a viúva, atentado contra a ordem, agressão à autoridade e tentativa de padrecídio.
E o carrasco ergueu o machado sobre o pescoço de José, que estava com mãos e pés amarrados.
Então José ordenou:
- Agüente, pescoço.
E o machado desceu, e o pescoço o despedaçou.
E foi uma festa para todos. E todos celebraram a humilhação da lei humana e a derrota da lei divina.

E Maria ofereceu a José um pedaço de queijo e uma rosa vermelha.
E José, vencedor despido, vencedor vencido, sentiu seus joelhos tremerem.

(Eduardo Galeano)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

olhos

Minhas vistas estão turvas e embaçadas. Não consigo enxergar o que está gritando diante de meus olhos. Ou não quero?
As pálpebras doem, os olhos querem ficar fechados.
Preciso abri-los. Preciso olhar, mas com outros olhos. Não mais com estes que estão doentes, que estão cansados e infelizes.
Sinto-me do avesso. Como um vestido colocado às pressas.
É isso, meus olhos estão do avesso.
Tenho que voltar a enxergar, antes que fique cega...
(Lia Iksonaj)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

1 dose de melancolia

Esta noite sonhei que caminhava sobre as nuvens, mas sentia um medo enorme de cair...
despencar lá do alto, e desaguar como chuva forte de verão...


...se quiser, chove na minha horta que faço a colheita com carinho... chove, chove tudo, deságua, inunda, esgota os líquidos, toda a reserva... e seca, resseca, enrruga, encolhe, diminui o tamanho, quase some... e prepara espaço, reserva o reservatório para inundarmos de novo...

porque vai chover, já está chovendo,

inundando as ruas, as vilas, os becos, as casas, os corpos e os corações...

chove, teima em chover, chuva fina, grossa, garoa com neblina, embaralhando o enxergar.

tremem passos sobre poças, enxurradas que encharcam botas, fazem difícil o navegar.

relampejam corpos pelas ruas e o medo afável pelos becos, enquanto chafarizes chovem pra cima molhando o céu.

no sereno mudo das vilas antigas, fincam eternas as marcas no chão, de desejo e segredo dos corações sob o véu.

chove a chuva dos olhos, escorrem pelas pupilas, deslizam pelos cílios, passando pelo rosto e caindo no peito. deságua. encharca. inunda.

chove a chuva que limpa a dor do coração, passando pela pele, adentrando as vísceras, sugando até a última gota se sangue. queima. arde, é profunda...

chove a chuva da alma. viva, eterna, pulsante. Trovões gritam na mente, enquanto a Lua despe-se das nuvens vagarosamente. quem imaginaria...

depois da tempestade, eis que vêm a tal calmaria...


P.P. e D.J.